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João Cerqueira

Mother: João Cerqueira


The story you're about to read has strong elements of a classic tragedy. It is a story about people who when offered to choose between an easy way out and responsibilites/obligations that life brings chose to make it easier for themselves. The life will teach them that their first choice was the wrong one and it will hit them back with the worse punishment. The story "Mother" by Portuguese writer João Cerqueira we're bringing you in a bilingual, Portuguese-English version. The translation into English was done by Francisca Barros

João Cerqueira has a PhD in History of Art from the University of Oporto. He is the author of eight books. The Tragedy of Fidel Castro won the USA Best Book Awards 2013, the Beverly Hills Book Awards 2014, the Global Ebook Awards 2014, was finalist for the Montaigne Medal 2014 and was considered by ForewordReviews the third best translation published in 2012 in the United States. It is published in six countries. Jesus and Magdalene won the silver medal in the 2015 Latino Book Award. The short storie A house in Europe received an honorable mention in the Glimmer Train July 2015 Very Short Fiction Award.

Mother/Mãe

A strange noise woke me up. At first it sounded like people in the street. Then, I gradually realized the noise didn't come from outside. There was someone here, inside. This was the third time someone tried to rob us, and I had to prove I was a man. I sat up without waking Mary, opened the bedside table drawer and got the gun. Without turning the lights on, I left the room, crossed the hall and started to go down the stairs. My bare feet slid down the steps quietly. I carried the gun, aiming it with my finger on the trigger. I was too focused to feel fear. Halfway down the stairs, I leaned against the banister and peered to the left. And there, at the back of the kitchen next to the counter, was a dark shadow. I went down one more step and aimed my gun. “Hands up! Don't move!” He fired instantly. I fired almost at the same time.

*

When I walked in, he was sitting down watching the Olympic Games in Atlanta. I cut to the chase. “I'm pregnant.” He jumped off the chair like a runner going for the 100-meter dash. “You're what!?” he yelled. “And why would I be the father? I know you've been with other men.” “You know that's not true.” He started pacing frantically and shaking his head.

Acordei com um ruído estranho. Primeiro pareceu-me que eram pessoas na rua. Depois, pouco a pouco, percebi que o ruído não provinha lá de fora. Havia alguém cá dentro. Era a terceira vez que nos tentavam assaltar e eu tinha de provar que era um homem. Levantei-me sem acordar a Maria, abri a gaveta da mesa-de-cabeceira e peguei na pistola. Sem ligar as luzes, saí do quarto, atravessei o corredor e comecei a descer a escada. Os meus pés descalços deslizavam pelos degraus silenciosamente. Levava a arma apontada com o dedo no gatilho. Estava demasiado concentrado para sentir medo. Quando cheguei a meio da escada, encostei-me ao corrimão e espreitei para a esquerda. E lá ao fundo, junto ao balcão, estava um vulto. Desci mais um degrau e fiz pontaria na sua direcção. - Mãos no ar! Não te mexas! Ele disparou imediatamente. Eu disparei quase ao mesmo tempo.

*

Ele estava sentado a ver os Jogos Olímpicos de Atlanta quando entrei. Fui directa ao assunto. - Estou grávida. Ele saltou da cadeira como um velocista que parte para os cem metros. - Estás quê? E por que hei-de ser eu o pai? Eu sei que andaste com outros… - Tu sabes que isso não é verdade… Ele começou a andar de um lado para o outro abanando a cabeça.

“Women say anything to get what they want. And you, Mary, you were always a liar. What do you want? Money?” At that moment, I came closer to him and took his hand in mine. “He is yours, Joe. When the baby is born you can take a paternity test.” He broke free of my hand, grabbed me by my sweater and leaned his forehead on mine. “Listen, it's not a little whore like you who's going to destroy my life. Get out of my way, or else…” And that was the last time I saw him. He must have been so scared of assuming the paternity that he ran away. I don't blame him. For an unemployed 21-year-old guy that had already been in jail for robbery and drug possession, it must have been frightening. It was better that way anyhow. We were ruled out of the happy families Olympics from the start. Without the support of my mother, I too wouldn’t have been capable of assuming such responsibility. To raise a child at the age of twenty was not in my plans. I couldn't do an abortion either because of my religious beliefs, so after the birth I gave him up for adoption. He was a blond boy, with blue eyes just like his father's. He had a red spot on his face as if he were carrying the mark of a curse. The first months were hard because my body reminded me every day that I had had a son. Seeing myself naked on the mirror, I found a deformed creature who had committed a barbarity. But later on, when my belly began to shrink and the weight began to drop, the creature transformed itself into a common woman who had done what had to be done. Giving my son up for adoption was an act of love. And the guilt was easing away until, finally, it disappeared. Sometimes, an angel with blue eyes showed up in my dreams.

- As mulheres dizem qualquer coisa para se safarem. E tu, Maria, sempre foste uma mentirosa. O que é que queres? Dinheiro? Nessa altura, aproximei-me dele e peguei-lhe na mão. - O filho é teu, Zé. Quando ele nascer podes fazer o teste para se saber quem é o pai. Ele soltou-se, agarrou-me pela camisola e encostou a testa dele à minha. - Ouve, não vai ser uma putinha como tu que me vai dar cabo da vida. Desaparece-me da minha frente, senão… E essa foi a última vez que o vi. Deve ter-se assustado tanto com a obrigação de assumir a paternidade que fugiu. Não o censuro. Para um rapaz de vinte e um anos desempregado que já estivera preso por roubo e posse de droga deveria ser algo assustador. Foi melhor assim. Nós estávamos excluídos das olimpíadas das famílias felizes. No entanto, sem o apoio da minha mãe, tão pouco fui capaz de assumir tamanha responsabilidade. Criar um filho aos vinte anos não fazia parte dos meus planos. Não fui capaz de abortar, mas após o nascimento entreguei-o para adopção. Era um rapaz loirinho e com uns olhos azuis iguais aos do pai. Porém, como se viesse com a marca de uma maldição, tinha uma mancha vermelha na face. Os primeiros meses foram difíceis pois o meu corpo recordava-me todos os dias que tinha tido um filho. Ao ver-me nua ao espelho descobria uma criatura deformada que havia cometido uma barbaridade. Mas depois, quando a barriga começou a encolher e o peso a diminuir, a criatura metamorfoseou-se numa mulher comum que fizera o que tinha de ser feito. Tê-lo dado para adopção fora um acto de amor. E a culpa foi-se atenuando até, por fim, desaparecer. No entanto, por vezes, quando sonho, aparece-me um anjo de olhos azuis

*

Everything goes wrong in my life. First, that whore gets pregnant and now I'm caught by the cops. I should have never trusted this guy I met in prison. He assured me that there would be no resistance by the store's owner and that it would be easy. I would go in, point the gun at the man and steal the box. He would stay in the car, watching the street and later we would run away to a safe place. In the end, I would keep sixty percent of the cash and he would keep the rest. But nothing went as planned. The police showed up, he ran away without warning and I ended up caught in the act. And now I'm here, in front of this judge who looks at me as if I were an insect, who will certainly give me a heavy penalty because of my record. “If you confess and show regret, maybe you'll only get twenty years,” said the public defender with a pathetic smile. I should have fired on those cops. If one day I leave jail, they'll never catch me alive again.

*

“You didn't need to, nobody could tell it was there, but it really does look better now,” said Mom, barely after I got home. I smiled, embarrassed, ran a hand down my face and turned to the mirror. That had been my last laser treatment session and the hemangioma had disappeared completely. However, I felt strange without that red spot, as if something of mine had been removed as well. But, deep down, wasn't that what I had really wished for? More than the vanity, didn't I want to erase the mark that reminded me I wasn't like other sons?

Tudo me corre mal. Primeiro, foi aquela puta a engravidar e agora fui apanhado pela polícia. Nunca devia ter confiado neste tipo que mal conhecia. Ele garantiu que não haveria resistência do dono da loja e que seria fácil. Eu entrava, apontava a arma ao homem e roubava a caixa. Ele ficava no carro a vigiar a rua e depois fugíamos para um lugar seguro. No fim, eu ficaria com sessenta por cento do roubo e ele com o restante. Mas nada correu como o planeado. A polícia apareceu, ele fugiu sem me avisar e eu acabei detido em flagrante delito. E agora estou aqui, diante deste juiz que me olha como se eu fosse um insecto, e que decerto me vai aplicar uma pena pesada devido ao meu cadastro. ‘’Se confessar e mostrar arrependimento, talvez só leve vinte anos’’ – disse-me o advogado oficioso com um sorriso patético. Devia ter disparado sobre os polícias. Se um dia sair da cadeia, nunca mais me apanharão vivo.

*

- Não era preciso, não se notava nada, mas realmente estás melhor assim – disse a minha mãe, mal entrei em casa. Eu sorri, embaraçado, passei a mão no rosto e dirigi-me a um espelho. Fora a última sessão de tratamento laser e o hemangioma desaparecera completamente. Contudo, sentia-me estranho sem aquela mancha vermelha, como se algo de mim também tivesse sido removido. Mas, no fundo, não era isso mesmo que desejara? Mais do que a parte estética, não pretendia apagar o sinal que me recordava não ser um filho como os outros?

Appearing to have read my thoughts, my mother put her hand on my shoulder. Reading thoughts was a gift that only she had and that allowed us to avoid conversations that neither of us wanted to have. I looked at her: her face was an arabesque of wrinkles and her hair was a rain-filled cloud, but her dark eyes gleamed as if there were a teenager hidden inside that aged body. “You are a gift from heaven,” she said. That sentence, which would have made me laugh had it been said by someone else, made me feel like I had a lump in my throat. I hugged her so that she couldn't see the tears in my eyes. “Mom…” Afterward she caressed my face, as if wanting to remove the last traces of the spot. The following morning, I left home early. I needed to find a job more than ever. My father, this father, had passed away two years after my adoption, and my mother had to raise me by herself. And now she had paid for the plastic surgery to remove the spot. Did she also read my thoughts on this and interpret them better than I did myself? Did she also know that cleaning that spot would break the link with a past she wasn't part of? I'll never know, because unlike her, I am not able to read anyone's thoughts. It was a warm fall morning and I decided to take a walk down the street. there were already people rushing and cars beeping at that time. The sun shone on the walls facing east, dividing the city in light and shadow. The tree leaves were orange, as if fire and not sap ran inside them. A friend had told me that there was a coffee shop half an hour away from my house that was in need of a waiter and I was going there. The sign read: Mary's Coffee Shop. The establishment was on a block of two-story houses. I opened the door and walked in. It was a coffee shop like so many others: a rectangular space, a counter, and six tables against the wall. In short, one of those places one just walks in when in need of a cup of coffee. Nothing flashy, but without any experience, where else could I be hired?

Parecendo ter lido os meus pensamentos, um dom que só ela tinha e que tantas vezes evitou que se falasse do assunto do qual ninguém queria falar, a minha mãe pôs-me a mão no ombro. Olhei-a: o seu rosto era um arabesco de rugas e o cabelo uma nuvem carregada de chuva, mas os olhos negros brilhavam como se dentro daquele corpo envelhecido se escondesse uma adolescente. - És uma dádiva do céu – disse ela. Aquela frase, que dita por outra pessoa me faria rir, deu-me um nó na garganta. Abracei-a para ela não ver que tinha lágrimas nos olhos. - Mãe... Então ela fez-me uma festa na face, como se quisesse ser ela a remover os últimos vestígios da mancha. Na manhã seguinte saí cedo de casa. Mais do que nunca, precisava de arranjar um emprego. O meu pai, este meu pai, morrera dois anos após ter sido adoptado e ela tivera de me criar sozinha. E agora pagara a operação plástica para remover a mancha. Será que ela também lera aqui os meus pensamentos e os interpretara melhor do que eu próprio? Será que ela também sabia que ao limpar aquela mancha estava a cortar o laço com um passado do qual não fazia parte? Nunca o saberei, ao contrário dela não sou capaz de ler os pensamentos de ninguém. Era uma manhã quente de Outono e decidi caminhar pelas ruas. Àquela hora já havia pessoas apressadas e carros a apitar. O sol batia nas fachadas voltadas a nascente dividindo a cidade numa zona de luz e noutra de sombra. As folhas das árvores estavam alaranjadas como se em vez de seiva lhes corresse fogo por dentro. Uma amiga tinha-me dito que estavam a precisar de um empregado num café que ficava a uma hora da minha casa e era para lá que me dirigia. Maria’s Café, dizia o letreiro. O estabelecimento ficava num quarteirão com casas de dois andares. Abri a porta e entrei. Era um café igual a tantos outros: um espaço rectangular, um balcão, seis mesas encostadas à parede. Enfim, um daqueles locais onde só se entra por necessidade. Mas, não tendo experiência, onde mais me poderiam aceitar?

There was a woman serving a costumer at the counter. The owner, I assumed. I watched her without her noticing: she was a brunette with curly hair, full lips and high cheekbones. She had a cross necklace and huge breasts that had certainly been enhanced with implants. How old was she? Thirty, forty? I came closer to her. “Good afternoon, my name is John and I heard you were looking for a waiter…” She looked at me with suspicion in her grey eyes. Perhaps she wasn't expecting a man. “Have you worked this type of job before?” “Yes, of course. “ I've worked in bars and nightclubs since I was eighteen and I am twenty now.” She breathed deeply and started tapping on the counter. Was she able to read my thoughts too? “Interesting…what can you do exactly?” “I can serve drinks, food…be pleasant to the customers…” I trailed off. “Sweep the floor and wash dishes?” “That too,” I said. “You'll start at nine and leave at seven, you'll have a half an hour lunch break, and I'll pay you the minimum wage.” “When do I start?” “Right now. There are dishes and glasses to wash in the kitchen.” I obeyed her commanding voice like a submissive child. Why do beautiful women like to give orders so much?

Ao balcão estava uma mulher a atender um cliente e supus que deveria ser a dona. Observei-a sem ela reparar: era uma morena de cabelo encaracolado, lábios grossos e maças do rosto salientes. Tinha uns seios enormes, decerto melhorados com silicone. Que idade teria? Trinta, quarenta…? Aproximei-me dela. - Boa tarde, chamo-me João e ouvi dizer que precisa de um empregado… Ela olhou-me com uns olhos cinzentos desconfiados. Talvez não estivesse à espera de um homem. - Já trabalhou neste ramo? - Sim, claro. Desde os dezasseis anos que trabalho em bares e discotecas… Ela respirou fundo e pôs-se a tamborilar no balcão. Será que também era capaz de ler os pensamentos? - Interessante…, o que sabe fazer ao certo? - Sei… servir bebidas, comida…, ser amável com os clientes… - Varrer o chão e lavar a loiça? - Também... - Começas às nove e terminas pelas sete, tens meia-hora para almoçar, pago salário mínimo. - Quando começo? - Agora. Há pratos e copos na cozinha para lavar. Obedeci àquela voz autoritária como uma criança submissa. Por é que as mulheres bonitas gostam tanto de dar ordens?

*

Everything is so different. People look so strange to me: their hair and clothes are weird, they say words I don't understand, they walk around with things in their ears, talking by themselves or with their eyes locked on their cellphones screen. I've been free for three hours and it feels like I've landed on another planet. They gave me the penknife and the twenty dollars I had in my pocket when they locked me up, some clothes and a bus ticket, and they threw me out here. I've been inside for nineteen years, paying my “debt to society,” and now they abandon me like this. I feel more fear out here than I did on the inside. I was told to go to an ex-con support center where I could get help. I had to wait more than an hour for my turn, but at least I started to see normal people. I was attended by a black woman with white hair that told me she had also been in jail and that she knew how I felt. “If you really knew, you would shut up,” I thought to myself. And after I answered her questions about my skills and about what I intended to do in the future, her enthusiasm began to fade and she ended up handing me a leaflet about vocational courses. “Don't give up,” she told me, “you're a fighter and the hardest part is over.” If I had stayed there a minute longer, I would have punched her in the face. One good thing I’ve found out is that now there are more stores, coffee shops, and restaurants and that everyone seems to have more money. There are even more fat people. And as for the cops, those motherfuckers, in some areas they aren't even seen. I am gradually getting used to the twenty-first century. For now, I will take any job to survive, but I will be aware of new opportunities. This time around, I won't trust anyone. I will think for myself and act alone.

*

Está tudo tão diferente. Que estranhas as pessoas me parecem: as suas roupas e os seus cabelos são ridículos, dizem palavras que não entendo, andam com coisas nos ouvidos a falarem sozinhos ou com o olhar fixo no ecrã dos seus telemóveis. Estou há três horas em liberdade e parece que aterrei noutro planeta. Deram-me o canivete e os vinte dólares que tinha no bolso quando me prenderam, umas roupas e um bilhete de autocarro, e puseram-me cá fora. Depois de ter estado dezanove anos preso, para pagar a dívida à sociedade – disseram eles -, agora abandonam-me assim. Sinto mais medo aqui do que lá dentro. Disseram-me para ir a um centro de apoio a ex-presidiários onde me poderiam ajudar. Tive de esperar mais de uma hora pela minha vez, mas pelo menos comecei a ver pessoas normais. Fui atendido por uma negra de cabelos brancos que me disse que também já tinha estado presa e que sabia como eu me sentia. ‘’Se soubesses mesmo, estavas calada’’ – disse para comigo. E depois de um interrogatório sobre as minhas competências e acerca do que eu pretendia fazer, o entusiasmo dela começou a esmorecer e acabou por me dar um folheto com cursos profissionais. - Não desista – disse-me -, você é um lutador e o mais difícil já passou. Se tivesse ficado lá mais um minuto, tinha-lhe dado um soco nos cornos. Uma coisa boa que estou a descobrir é que agora há mais lojas, cafés e restaurantes e toda a gente parece ter mais dinheiro. Até há mais gordos e gordas. E quanto à polícia, esses filhos da puta, nalgumas zonas não se vê nenhuma. Aos poucos estou a adaptar-me ao século vinte e um. Por agora vou aceitar qualquer trabalho para sobreviver, mas estou atento às oportunidades. E desta vez não vou confiar em ninguém. Desta vez vou pensar pela minha cabeça e actuar sozinho.

*

My relationship with Mary started as all workplace relationships do. The daily contact brought us closer: she gave me orders, but her voice started to soften; we exchanged glances constantly, now and then our bodies touched each other; gradually she began to smile, later we started to play with one another increasing physical contact, until one day, when I was preparing to leave she asked me if I would like to go up to her room. She spoke little about herself, making it clear she didn't want to share her past. She told me once, after I asked her, that she had come from a distant town, had invested all in this business, and that was all I needed to know. She also added, in a tone that didn't sound playful, that if I asked her more questions I would get my butt smacked. However harsh she could be, it seemed like she really liked me. The way she caressed me, kissed me, hugged me when we parted, was so intense. There was a tenderness in her, a surrender, something that I didn't know exactly how to define, that would actually scare me. She never noticed my flaws and when we said goodbye, she told me to eat well and to wrap up warm. Sometimes, she called me “my angel.” As for me, when a young man of my age finds a more experienced lover, he can only think of one thing: sex. Day and night, on the bed, in the kitchen, on the coffee shop floor. I had never felt so good. What a shame she didn't let me take pictures of her naked. I promised her I wouldn't show them to anyone, that she could hide her face, but even then she didn't budge. There was a trust boundary that she would never cross.

*

A minha relação com Maria começou como começam todas as relações num local de trabalho. O convívio diário foi-nos aproximando: ela dava-me ordens, mas a sua voz foi-se suavizando, trocávamos olhares constantemente, volta e meia os nossos corpos tocavam-se, aos poucos ela começou a sorrir, depois começámos a brincar um com o outro aumentando o contacto físico, até que um dia, quando me preparava para sair, ela me perguntou se gostaria de subir até ao quarto dela. Ela pouco falava sobre si própria, tornando claro que não queria partilhar o seu passado. Viera de uma cidade distante, investira o que tinha neste negócio e isso era tudo o que eu precisava de saber – disse-me uma vez em que me mostrei curioso. Acrescentou ainda, num tom que não me pareceu de brincadeira, que se lhe fizesse mais perguntas levava duas palmadas no rabo. No entanto, parecia-me que ela gostava mesmo de mim. A forma como me acariciava, como me beijava, como me abraçava, era tão intensa. Havia nela uma ternura, uma entrega, algo que nem sei mesmo definir, que chegava a assustar-me. Nunca reparava nos meus defeitos e quando nos despedíamos recomendava-me que me alimentasse bem. Por vezes, chamava-me o seu ‘’anjo’’. Quanto a mim, um rapaz da minha idade quando arranja uma amante mais experiente do que ele só pensa numa coisa: sexo, dia e noite, na cama, na cozinha, no chão do café. Nunca me sentira tão bem. Que pena ela não me deixar tirar-lhe fotografias nua. Eu prometi-lhe que não mostraria a ninguém, que ela podia esconder a cara, mas nem assim cedeu. Havia um limite de confiança que ela nunca iria transpor.

One night we were lying on the bed and she started touching the area of my face where the spot used to be. Suddenly, her fingers, as divining rods that detect water underneath the land, trembled. And at this moment, she looked at me in a very strange way. I prepared myself for the question I thought she was going to ask, but Mary moved her hand away and kept silent. Later, she shook her head, said something I didn't understand and laughed to herself. I did not tell her anything. I had the right to keep my secrets too. That night there was no sex.

*

The coffee shop was an easy target. I passed a few days studying the exterior: there weren't any cops in the area, nor a lot of movement on the street after ten. One afternoon when the place was full, I walked in and sat down at a table in the corner. The owner was busy at the counter and I hardly saw her face. A nice young man served me and, when I checked that there was no alarm and no video cameras, I left my money on the table and went on my way. I waited until they closed and then found out that only an older lady, the cook, had gone home for the day. The owner lived on floor above and the young man was probably fucking her—these kids nowadays have such luck. But that wouldn't be a problem. After sex, both of them would sleep like rocks. I would take action later that night. Around three in the morning, I forced the lock to the front door and walked in. I turned on my flashlight. The light slid across the wooden floor, went up the stairs and returned to the hall. I had my path clear. I moved through the space very carefully, one hand on the weapon in my pocket, until I reached the counter. And there I found the cash register. If the money wasn't there, then I would go upstairs to make them give it to me. I was about to open it, when I heard a voice. “Hands up! Don't move!” I reached into my pocket, pulled out my gun, and fired.

Uma noite estávamos deitados na cama e ela começou a tactear a zona da minha cara onde estivera o sinal. De repente os seus dedos, como a vara de um vedor que detecta água debaixo da terra, tremelicaram. E nesse momento ela olhou-me de uma forma muito estranha. Preparei-me para a pergunta que julgava que ela iria fazer, mas a Maria afastou a mão e ficou calada. Depois, abanou a cabeça, disse algo que não entendi e riu-se sozinha. Eu, não lhe contei nada. Também tinha direito a guardar os meus segredos. Nessa noite não houve sexo.

*

Aquele café era um alvo fácil. Andei alguns dias a estudar o exterior: não havia polícia na zona, nem grande movimento na rua depois das dez horas. Uma tarde em que o salão estava cheio, entrei e sentei-me a uma mesa num canto. A dona estava atarefada ao balcão e mal lhe vi o rosto. Veio um rapaz simpático servir-me e, quando comprovei que não havia alarme, nem câmaras de vídeo, deixei o dinheiro na mesa e fui-me embora. Esperei até fecharem e então descobri que só uma velha cozinheira saíra do café. A dona morava no andar de cima e o rapaz devia andar a comê-la – estes putos de hoje têm sorte. Mas isso não seria um problema. Depois do sexo, os dois deveriam dormir como pedras. No dia seguinte actuaria. Pelas três da manhã, forcei a fechadura da porta e entrei. Liguei uma lanterna. O foco de luz deslizou pelo soalho, subiu as escadas que davam para o primeiro andar e regressou ao salão. Tinha o caminho livre. Com cuidado, fui avançando pelo espaço até ao balcão. E eis que descubro a caixa registadora. Se o dinheiro não estivesse aqui, então subiria as escadas para os obrigar a entregar-mo. Estava quase a conseguir abri-la, quando ouço uma voz. - Mãos no ar! Não te mexas! Levei a mão ao bolso, saquei da arma e disparei.

*

I fired until emptying the magazine. The thief was laying on the ground, not moving. Only then I dared to go down the remaining steps. I hadn't yet arrived to the ground floor when Mary showed up, running with a knife in her hand. “What happened?” she cried out. “Are you hurt?” “I'm okay, but I think I killed the thief. Stay there,” I commanded her. I turned on the lights and stepped forward. Even though the gun had no more bullets, I continued pointing it at the man who lay at my feet. The lifeless man had his eyes open—that empty blue was the color of death. Slowly, Mary moved toward me and joined me in gazing at the dead man. The knife fell off her hand. She kneeled beside him, searched his pockets frantically until she found an ID card and started saying, “No, no, no…” “Do you know this guy?” I asked her. She stood up trembling. She had a haggard look and her mouth was crooked. For a few moments, she looked either to me or to the dead man, appearing to be comparing us. Later, she brought her bloody hand to where my mark used to be, as if she wanted it to return to my face. And then, when she saw me bloodstained, she cried out horrendously.

*

Disparei até esvaziar o carregador. O ladrão ficara estendido no chão e não se mexia. Só então me atrevi a descer o resto das escadas. Ainda não chegara ao rés-do-chão, apareceu a Maria a correr com uma faca na mão. - O que aconteceu? – gritou – Estás ferido? - Estou bem, mas acho que matei o ladrão. Deixa-te estar aí – ordenei-lhe. Liguei as luzes e avancei. Mesmo com a arma sem balas, continuei a apontá-la ao homem que jazia aos meus pés. O cadáver ficara com os olhos abertos e a cor da morte era azul. Devagar, a Maria junta-se a mim e põe-se a olhar para o morto. A faca cai-lhe da mão. Ajoelha-se junto dele, revista-lhe os bolsos até encontrar um documento de identidade e começa a dizer ‘’não’’, ‘’não’’, ‘’não’’. - Conheces este tipo? – perguntei-lhe. Ela levantou-se a tremer. Tinha o olhar esgazeado e a boca torta. Durante alguns instantes, olhou ora para mim ora para o morto, parecendo estar a comparar-nos. Depois, pôs a mão ensanguentada na zona onde estivera a minha marca como se a quisesse devolver ao meu rosto. E então, quando me viu manchado de sangue, soltou um gritou horrendo.

 

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